Desde que nasci participo do embate entre meninos e meninas. Na infância, discutia-se acaloradamente sobre a fortaleza do He-man e da Sherra. Lembro-me ainda dos duelos entre meninos e meninas protagonizados no Xou da Xuxa, hodiernamente reproduzidos na televisão brasileira em diversos programas como o Big Broder e o Fantástico. Surpreende-me, no entanto, a ressonância deste tipo de disputa em ambientes supostamente esclarecidos, na academia, nas grandes empresas e movimentos sociais, por exemplo, manifestando-se uma vez mais por ocasião da criação do aplicativo Lulu para avaliação moral da vida privada e intimidade masculina.
A competição sexista ignora a distinção entre a divisão sexual do trabalho, raiz das diferenças entre sexo e gênero, no plano da cultura, e a dominação social de um sexo sobre o outro, supostamente baseada em distintas capacidades de cada sexo. Sabe-se que a divisão sexual do trabalho baseou-se no prolongamento cultural da função biológica de homens e mulheres na reprodução humana. Não é difícil deduzir que não seria eficiente organizar o trabalho numa sociedade primitiva com as mulheres trabalhando na caça e os homens priorizando o trabalho doméstico. A amamentação, por exemplo, tornar-se-ia praticamente inviabilizada neste tipo de organização social primitiva.
Vulgarmente, tal divisão do trabalho tenderia à conclusão apressada acerca da constituição de uma cultura de dominação masculina. Entretanto, a organização matrilinear das sociedades indígenas nos mostra o contrário. O fato das mulheres responsabilizarem-se pela educação dos filhos, homens e mulheres, conferia-lhes autoridade e não subordinação.
Atentando às famílias liberais e às questões levantadas por mulheres e homens pioneiros desde o romantismo, perceberemos que a autoridade sobre a família permanecia com a mulher, devido à sua função destacada na reprodução humana. Portanto, não é verdade que tais sociedades sejam marcadas pela dominação masculina, mas que havia uma divisão sexual do trabalho em que os homens eram proeminentes na vida pública e as mulheres na vida familiar.
A superação desta divisão sexual do trabalho, outrossim, é uma conquista do capitalismo. A revolução inglesa começou organizando o trabalho na indústria têxtil, realizado por mulheres. A acumulação de capital e produção de riquezas demanda cada vez mais trabalho, de homens e mulheres, tornando ineficiente a divisão sexual pré-capitalista, reforçada pela tendência à automatização do trabalho doméstico e à massificação da educação escolar infantil.
Portanto, foram os produtos da economia de mercado que trouxeram consigo a discussão sobre a atualidade da divisão sexual do trabalho.
E isto significa que os valores genotipicamente masculinos e femininos resultantes da divisão sexual do trabalho primitivo, não são próprios de homens e mulheres. A competitividade e o cuidado, para ficar num exemplo, não são assumidos exclusivamente por um dos sexos, tal com vulgarmente se crê. São valores que precisam ser articulados como virtudes da pessoa humana, em sua justa medida, independente do sexo desta pessoa.
Deste modo, percebe-se quão estúpida é a competição sexista manifesta hodiernamente pela disputa em torno da legitimidade do aplicativo do Lulu como reação a uma cultura "machista". Ora, se é verdade que há a coisificação do corpo da mulher, também há a coisificação do corpo do homem, para o qual não se admite o fracasso sexual e se exige uma virilidade indiferente às suas condições físicas eventuais e ao seu interesse na pessoa com quem se relaciona.
A polêmica gerada em torno do aplicativo, deve-se não apenas por violar o artigo 5º da constituição federal e o artigo 12º da declaração universal dos direitos do homem. Também não se deve apenas pela possibilidade de suportar o Bullyng virtual, mas, principalmente, por desviar a discussão legítima sobre a inclusão igualitária da mulher na vida pública pelo reforço da conduta sexista de homens e mulheres, interessados em divertir-se através de uma competição infantil que em nada contribui para a construção de uma sociedade verdadeiramente republicana.